O Brasil, hoje reconhecido como um país de grande importância no cenário mundial, tornou-se uma alternativa de refúgio para aqueles que querem recomeçar. Diante da crise financeira que teve em início em 2008 e das políticas migratórias cada vez mais restritivas na Europa e nos Estados Unidos, o país ressurgiu dentre os destinos finais das rotas migratórias. Tal fato decorre, principalmente, da relativa estabilidade econômica brasileira, juntamente de uma política externa pró ativa, promovendo o desenvolvimento econômico-social. No entanto, o Brasil é um dos únicos países no mundo sem serviço especializado de migrações. Ademais, a legislação brasileira trata a questão da migração como um problema de segurança nacional, quando, na verdade, deveria ser vista como uma questão de direitos humanos.
O vigente Estatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815, de 19/8/1980), que data de 1980, mostra-se obsoleto. Assinado pelo general João Figueiredo, teve sua aprovação garantida graças ao dispositivo de aprovação por decurso de prazo da Constituição de 1967, mesmo sofrendo forte oposição. A lei nº6.815 reflete o contexto na qual foi criada – Guerra Fria e ditadura civil-militar – e logo visa à segurança nacional em detrimento dos direitos humanos básicos das pessoas migrantes. A lei vigente garante, assim, ao Estado a possibilidade de discriminar, punir ou ejetar, de distintas formas, qualquer estrangeiro que o Poder Executivo considerar como uma ameaça, mostrando-se incompatível com a própria constituição “cidadã” de 1988 e com os Direitos Humanos Internacionais.
Dados do Departamento de Estrangeiros da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça apontam que o número de estrangeiros regulares, no Brasil, registrados junto ao Departamento de Polícia Federal em 2011[1], aumentou em quase 50% com relação a 2010. Até junho de 2011, registrava-se cerca de 1,466 milhão de estrangeiros, enquanto que em dezembro de 2010, o número não ultrapassava os 961 mil [1]. Não há estatísticas oficiais sobre a quantidade de imigrantes indocumentados, mas as principais organizações não governamentais que trabalham sobre o tema migratório estimam que esse número chegue a 600 mil[2], o que resultaria em um total de mais de dois milhões de estrangeiros morando no Brasil atualmente. No entanto, esses números se mostram controversos nos diversos órgãos que os contabilizam, não havendo uma clareza nas informações.
Em decorrência do aumento significativo dos migrantes, nos últimos anos, o Brasil conheceu algumas crises geradas por fluxos pontuais de migração internacional, como o caso dos haitianos, que aumentaram significativamente sua presença nos últimos quatro anos. Devido à falta de legislação adequada e de políticas dela decorrentes, estes ficaram vulneráveis às violações de direitos humanos, evidenciando a falta de estrutura no acolhimento do migrante e associando uma imagem negativa da mobilidade humana junto à opinião pública. Essa vulnerabilidade aumenta quando falamos dos migrantes negros e sem condições financeiras, considerados indesejáveis por nossa sociedade preconceituosa que muitos acreditam ser acolhedora.
Entre 2009 e 2012 houve duas propostas de reformulação do Estatuto, mas não apresentavam mudanças significativas e aprofundadas em relação à questão. Assim, diante de uma pressão da sociedade civil e da ciência do Estado em relação ao não funcionamento do Estatuto atual para a questão dos migrantes, o Ministério da Justiça, por meio da Portaria 2.162/2013, criou uma Comissão de Especialistas, formada por professores universitários e membros do Ministério Público, juristas e cientistas políticos, além de especialistas em direitos humanos, direito constitucional e direito internacional[2]. A partir de conferências, reuniões e opiniões de ONGs, a Comissão apresentou no último mês de agosto uma proposta de Lei de Migrações [3]. O anteprojeto apresentado abandona a questão dos migrantes como de segurança nacional, para adequar-se à Constituição de 1988 e passa a abordar as migrações sob a perspectiva dos Direitos Humanos. Deixa também de usar a palavra “estrangeiro”, de conotação pejorativa, e passa a utilizar o termo “migrantes”, sinalizando mudança de paradigma na política migratória, atualmente subordinada à lógica da segurança nacional. Sobretudo, a nova proposta da lei propõe uma adaptação legislativa à realidade de mobilidade humana e globalização econômica.
Se somos um país historicamente formado por migrantes, como podemos então continuar tratando os migrantes como questão de segurança nacional? O contexto contemporâneo da mobilidade humana, marcado pela evolução tecnológica e mudança dos meios de produção, resulta na facilitação dos deslocamentos humanos. Desse modo ao burocratizar e restringir a regularização migratória não se evita o deslocamento, mas se degrada as condições de vida do migrante. O Brasil se coloca, portanto, paradoxalmente frente aos deslocamentos: ao passo que é o primeiro país de reassentamento de refugiados na América do Sul, é, junto à Venezuela, um dos únicos países a não ratificar a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, datada de 1990, marco internacional importante quando tratamos da questão.
Podemos assim verificar a extrema importância, diante do protagonismo assumido pelo Brasil no cenário mundial, de reformular o estatuto retrógrado em vigor, substituindo-o por um coerente com a Constituição. Todavia, é de se pensar, perante o cenário de conservadorismo político evidenciado neste último mês com as eleições para o Congresso, o anteprojeto em questão teria forças suficientes para ser aprovado. O aumento significativo da presença de legisladores ligados às bancadas ruralista, evangélica e de segurança podem causar empecilhos para o avanço do processo iniciado e aqui brevemente retratado.
[1] Não foram encontrados dados seguros dos anos posteriores.
[2]André de Carvalho Ramos; Aurélio Veiga Rios; Clèmerson Merlin Clève; Deisy de Freitas Lima Ventura; João Guilherme Lima Granja Xavier da Silva; José Luis Bolzan de Morais; Paulo Abrão Pires Júnior; Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari; Rossana Rocha Reis; Tarciso Dal Maso Jardim; Vanessa Oliveira Batista Berner. Mais informações: http://www.justica.gov.br/noticias/proposta-de-nova-lei-de-migracoes-devera-substituir-estatuto-criado-durante-a-ditadura/entenda_novo_estatutoestrangeiro2.pdf
Bibliografia
[1] http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={A5F550A5-5425-49CE-8E88-E104614AB866}&BrowserType=NN&LangID=pt-br¶ms=itemID%3D%7BF7B2EE1D-60D4-405F-80C9-C91D4EA12FC3%7D%3B&UIPartUID=%7B2218FAF9-5230-431C-A9E3-E780D3E67DFE%7D
Artigo – “Estatuto do estrangeiro ou lei de imigração?” – Deisy Ventura
e Paulo Illes
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