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A crise do neoliberalismo no Chile

Updated: Apr 2, 2021

Por Melina Mayrink O’Kuinghttons

No decorrer das últimas décadas, o Chile conquistou uma imagem de um país moderno, estável, quase de “Primeiro Mundo”. Isso se deve ao suposto “Milagre Econômico”, termo utilizado nos anos 1980 para se referir à implementação do modelo neoliberal no Chile durante o período da ditadura militar. No entanto, o que se observa na segunda metade de 2019 é uma crise do neoliberalismo: milhares de chilenos estão ocupando as ruas de todo o país e exigindo reformas estruturais após anos de abusos por parte do governo. Afinal de contas, como a própria população tem afirmado, era tudo “maquiagem”.

Em outubro de 2019, nos deparamos com cenas diárias de massas populares chilenas tomando as ruas e manifestando sua insatisfação em relação ao estilo de vida que o governo lhes proporciona. Sem uma figura de liderança estabelecida, o predomínio popular constitui os movimentos estudantis – jovens adultos que levantam a bandeira dos direitos humanos e que vêm reivindicando reformas estruturais no sistema político chileno. A situação em que o país se encontra é de um claro conflito entre Estado e sociedade que os órgãos administrativos do poder não estão conseguindo controlar.

Este artigo tem como objetivo analisar o que levou à crise que o Chile assiste hoje, uma vez que consiste em um cenário político muito incerto tanto para o país quanto para a região latino-americana. Para tal, o foco recairá sobre a privatização do sistema educacional chileno e a frente estudantil nas manifestações.

Laboratório do neoliberalismo

Quando o general Augusto Pinochet depôs o presidente socialista Salvador Allende e implementou a ditadura militar chilena em 1973, ele reverteu o projeto econômico em andamento. Ao invés de um Estado regulador, instaurou um viés desestatizante, liderado pelo grupo de economistas estadunidenses, os Chicago Boys. A partir de então, o Chile se tornou o laboratório do neoliberalismo dos Estados Unidos na América, e o país passou a experimentar privatizações, aberturas ao mercado externo, reformas trabalhistas, reduções nos investimentos públicos e minimização do papel do Estado enquanto agente responsável por áreas como a saúde e a educação. A influência da Escola de Chicago na condução da economia chilena foi evidenciada em 1975, quando o economista estadunidense Milton Friedman se reuniu com Pinochet para discutir a futura implementação de um “tratamento de choque” neoliberal no Chile para alavancar a economia.

A partir de então, o processo de tomada de decisão do Estado chileno passou a se basear em princípios técnicos e científicos, e não políticos e ideológicos. Dessa forma, emergiu uma elite política que detinha o poder de formular políticas baseadas nas premissas neoliberais, dentre elas: interesse individual, propriedade privada e supremacia do mercado financeiro.

Steve Hanke, acadêmico da Universidade Johns Hopkins nos Estados Unidos, afirma que é complicado analisar o desenvolvimento econômico chileno durante a ditadura de Pinochet. Ele diz que apesar da atual aparente prosperidade do país ser resultado desse período, após a ditadura, “não havia seguro de saúde universal, seguro-desemprego, gratuidade no ensino superior, nem pilares solidários no sistema de previdência”. Além disso, apesar do aumento nos níveis econômicos, os níveis sociais se mantiveram estagnados – em especial a concentração de renda, que é resultado de políticas neoliberais na medida em que, nesse modelo, a movimentação da economia se encontra nas mãos de apenas um grupo social.

Apesar dos altos índices de crescimento econômico durante o período da ditadura militar, é possível afirmar que o Chile fracassou no que diz respeito a suas políticas de cunho social. Embora seja o país com maior PIB per capita da América Latina, é também o que possui os maiores índices de desigualdade – de acordo com a Forbes de 2014, a porcentagem de riqueza dos bilionários chilenos em relação ao PIB é a mais alta do mundo.

Além disso, o país promove uma comercialização total da maioria de seus serviços sociais, como a água, a eletricidade, a aposentadoria e a educação. Tudo aquilo que deveria ser dado por direito à população é pago, o que explica os altíssimos índices de endividamento que os chilenos enfrentam há décadas para conseguir se sustentar nessa sociedade tão desigual.

O sistema educacional chileno

Para que se façam compreender as manifestações populares no Chile que se iniciaram em outubro de 2019, é fundamental destacar a privatização do sistema educacional no país, uma vez que os estudantes chilenos vêm compondo a maioria numérica que protesta nas ruas.

Durante a ditadura de Pinochet, ocorreu o que ficou conhecido como uma elitização do sistema de ensino. Enquanto a educação pública sofreu significativas reduções de verbas, a educação privada recebeu subsídios, o que criou a categoria de escola particular subvencionada. A partir de então, instaurou-se uma concepção meritocrática da educação, uma vez que o critério para fazer parte de uma instituição de ensino de qualidade passou a ser mais rigoroso e excludente. No mandato de Michelle Bachelet, essa discriminação foi minimizada, e ficou decidido que ao menos 30% dos estudantes de instituições privadas com subsídios estatais devem vir das camadas mais pobres. No entanto, constatou que os princípios neoliberais implementados na ditadura estavam muito bem estabelecidos no país, já que a desintegração e o caráter individualista se fazem muito evidentes na sociedade chilena.

Para obter acesso à educação fundamental e superior, é preciso ter dinheiro para pagá-la. Porém, como foi destacado anteriormente, a sociedade chilena é extremamente desigual e nem todas as famílias conseguem financiar a educação, sendo obrigadas, muitas vezes, a recorrer a bolsas ou créditos estudantis – Crédito con Aval del Estado (CAE) – que começam a ser pagos ao Estado ou a bancos privados após a formatura. As principais críticas direcionadas ao CAE se referem ao nível de endividamento que os estudantes e suas famílias têm que carregar durante anos 20 anos, com juros de 6%. As vidas profissionais dos jovens já se iniciam com a pressão para pagar dívidas por sua educação.

Figura 2. Fonte: Fundación Sol

Em 2006, ocorreu uma grande onda de protestos liderados por mobilizações estudantis, que ficou conhecida como “revolta dos pinguins”, uma vez que o uniforme dos estudantes de muitos colégios do país era composto por terno e gravata. Nesse momento, os manifestantes tomaram as ruas reivindicando gratuidade na educação e no transporte público, além de outras reformas estruturais do sistema educacional. No entanto, tais reivindicações não alcançaram o nível sistêmico a ponto de conquistar uma alteração de fato na ordem estabelecida.

Em 2011, novas massas estudantis conseguiram fazer com que o presidente da época, Sebastián Piñera, reduzisse os juros cobrados sobre o valor creditado pela CAE de 6% para 2%. Tal medida não foi resultado da “boa vontade” dos bancos, e sim da iniciativa estatal de custear 4% dos juros dos estudantes através de recursos fiscais. Apesar de ter tido um impacto nas dívidas dos estudantes e suas famílias, a redução dos juros não eliminou o problema estrutural, já que, ainda assim, a dívida persistiu e os bancos seguiram lucrando.

Segundo uma análise produzida pela Fundación Sol em 2017, 90% dos créditos do CAE é entregue a três bancos: Scotiabank, Itaú-CorpBanca e Banco Estado. Além disso, apesar do CAE ter conseguido aumentar o acesso à educação superior, 70% dessa incrementação se concentra em 20 centros educativos, dos quais a maioria pertence a quatro grandes grupos educativos privados. O documento também indica que, para tornar a comercialização da educação mais atrativa para as entidades financeiras, o Estado chileno propôs subsídios aos bancos através de um sistema de compra dos créditos com sobrepreço.

Figura 3. Fonte: Fundación Sol

A implementação do CAE fez emergir toda uma geração de jovens endividados que, muitas vezes, encontram dificuldades em sair do círculo da pobreza, já que não conseguem se desfazer de dívidas de anos atrás; outros, por sua vez, nem sequer chegam a terminar suas carreiras, e mesmo assim têm que pagar pelos créditos que já haviam pedido. Isso evidencia como a criação do CAE aprofundou ainda mais a mercantilização do sistema educacional chileno, estabeleceu uma concepção lucrativa acerca da educação e construiu uma sociedade construída sobre dívidas. Assim, o que se observa atualmente é uma alta demanda populacional por uma educação gratuita e de qualidade. A reivindicação não é pelo acesso à educação; é pelo direito a ela.

Manifestações de 2019

Em outubro de 2019, ficou em evidência para o mundo inteiro que os chilenos viviam há décadas com um descontentamento acumulado. O estopim para o início das manifestações foi o aumento da tarifa do transporte público, mas depois evoluiu para uma série de outras indignações. Mesmo após o recuo do governo quanto ao aumento da tarifa, milhares de pessoas continuaram nas ruas marchando por seus direitos básicos, a maioria formada por estudantes que dizem representar também seus pais e avós que viveram a ditadura.

As repressões governamentais têm sido duras. Nos primeiros dias de manifestações, Piñera decretou estado de emergência e estabeleceu o toque de recolher. Declarou estar em guerra com um inimigo interno povo e disse que os protestantes eram marginais. Colocou o Exército nas ruas, o qual matou dezenas de pessoas e instituiu a estratégia de atirar balas de borracha nos olhos dos manifestantes, deixando, até o momento, mais de 200 pessoas parcialmente sem visão.

O que se tem observado é que, apesar de ser um país que tem muita memória da sua história no período da ditadura, tem vivido inúmeras violações aos direitos humanos. O INDH (Instituto Nacional de Direitos Humanos) do Chile faz denúncias diárias de abusos e crimes cometidos por agentes do Estado, desde maus tratos no momento da detenção até torturas e assassinatos. Mulheres prestaram queixas por violência sexual, inúmeras vítimas foram intoxicadas por gás lacrimogêneo e centenas de pessoas estão detidas por todo o país.

Há mais de dois meses, o Chile tem vivido o período político mais conturbado desde a época da ditadura, e não há sinais de interrupção até que as demandas populares sejam atendidas. O que se pode dizer é que os chilenos têm certeza de suas reivindicações de uma reforma sistêmica e têm lutado para serem ouvidos pelo Estado. Suas demandas relacionadas aos sistemas de aposentadoria (AFP), saúde, educação, transporte público, água e investigação por corrupção exigem toda uma reestruturação dos quadros político, social e econômico que vêm gerindo o país até hoje.

Além disso, é importante ressaltar a reivindicação de um senso de comunidade. O povo indígena Mapuche, habitante da região centro-sul do Chile, bem como os símbolos que o representam, têm uma significativa expressão nas lutas de reivindicação social. Uma foto que se tornou viral do momento atual e que tem, em seu topo, um rapaz segurando a bandeira mapuche, se tornou um símbolo da luta contra o modelo neoliberal. Excluídos durante décadas do centro de decisão administrativa do Estado, o povo Mapuche é um importante representante das demandas políticas neste período de convulsão social.

Também observa-se uma abrangente participação democrática dentro de pequenas comunidades, como bairros e vizinhanças; muitos chilenos no estrangeiro também têm tido a oportunidade de deliberar sobre a situação do país a partir da organização de cabildos; e tudo isso sem estender a bandeira de nenhum partido político. O povo percebe a necessidade de ouvir e ser ouvido, o que possibilita o profundo vínculo que está sendo construído em prol de uma sociedade mais justa e livre dos abusos governamentais.

O que vai acontecer agora?

As manifestações que se iniciaram no Chile em outubro de 2019 evidenciaram um descontentamento acumulado por anos por parte da população em relação ao fazer político. Quando começaram, não consideraram a opção de interromperem as reivindicações – provocaram todo um abalo na visão comum do país. No dia 15 de novembro, foi anunciada a convocação de um plebiscito para redigir uma nova Constituição que possa reformar as bases governamentais herdadas da ditadura de Augusto Pinochet. Tal decisão foi tomada conjuntamente pelos partidos políticos que compõem a representação no Congresso chileno e o plebiscito deve ocorrer em abril de 2020.

O futuro do país é incerto para todos, e não é possível concluir com exatidão o processo que está se desenvolvendo. Mas se há algo que ficou evidente nos últimos dois meses, é que mesmo uma articulação sem uma figura de liderança clara pode promover profundas alterações nos aparelhos de Estado.

Bibliografia

BBC News Brasil. Como a Escola de Chicago transformou o Chile em laboratório do neoliberalismo. UOL, 23/03/2019. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2019/03/23/bolsonaro-no-chile-como-a-escola-de-chicago-transformou-pais-latino-americano-em-laboratorio-do-neoliberalismo.htm. Acesso em: 10 de nov. de 2019.

CHARLEAUX, João Paulo. Os protestos no Chile. E o histórico de reivindicações populares no país. Nexo Jornal, 21/10/2019. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2019/10/21/Os-protestos-no-Chile.-E-o-hist%C3%B3rico-de-reivindica%C3%A7%C3%B5es-populares-no-pa%C3%ADs. Acesso em: 23 de nov. de 2019.

KREMERMAN, M.; PÁEZ, A. Endeudar para gobernar y mercantilizar: El caso del CAE. Estudios de la Fundación SOL. Maio de 2017. Disponível em: http://www.fundacionsol.cl/wp-content/uploads/2018/04/CAE2017.pdf. Acesso em: 23 de nov. de 2019.

LIRA, F. R. F. T. Do socialismo ao neoliberalismo: o Chile dos anos 1970. Vitrine da Conjuntura, Curitiba, v.3, n. 6, agosto 2010. Disponível em: https://www.fae.edu/galeria/getImage/1/261427454798353.pdf. Acesso em: 10 de nov. de 2019.

SEGOVIA, Macarena. El hoyo negro del CAE: deuda de estudiantes asciende a 7.657 millones de dólares. El Mostrador, 13/06/2019. Disponível em: https://www.elmostrador.cl/noticias/pais/2019/06/13/el-hoyo-negro-del-cae-deuda-de-estudiantes-asciende-a-7-657-millones-de-dolares/. Acesso em: 23 de nov. de 2019.

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